A cultura do ódio e a vulnerabilidade
Caros amigos, este texto é uma pequena reflexão sobre questões que nos incomodam constantemente. Permitam-me definir em primeiro plano os vulneráveis.
Conforme a Nova Enciclopédia da Bioética, “pessoa vulnerável é um ser humano cuja autonomia, dignidade e integridade exigem proteção e solicitude devido à sua fragilidade”. A lista de vulneráveis é enorme: crianças, velhos, negros, índios, são alguns exemplos.
Uma séria inversão de valores nos é instalada há séculos. É fácil observar que as mulheres (consideradas no passado como bruxas), os judeus (exterminados em massa pelos nazistas), as minorias em sua generalidade, sempre sofreram perseguições e foram alvo de exclusão social.
A cultura do ódio é disseminada pela internet – em sites que pregam intolerância sexual e racial, e já não há limites para degradar um ser vulnerável. Gostaria que expôr aqui uma moda inventada nos Estados Unidos há algum tempo: os “Bumfights videos”. Trata-se de uma série independente onde mendigos (em troca de bebidas alcoólicas, de comida ou de algumas moedas) se submeteram a cenas absurdas – como entrar em um carrinho de supermercado e ser lançado ( dentro deste carrinho) de uma escada enorme, ou cenas de brigas entre moradores de rua, etc. Muitas vezes estes moradores de rua se machucaram de verdade, pois era tudo real, sem dublês. O site “Bumfights” apresentou uma “justificativa” para realização dos vídeos. Alegou que queria chamar atenção para pessoas que vivem em situação de pobreza e que seu objetivo era educar a população! A NCH ( National Coalition for the Homeless) declarou que estes vídeos disseminam o ódio contra os moradores de rua, e que atentam contra sua dignidade. Vários ataques a moradores de rua – registrados policialmente- demonstram métodos inspirados nestes vídeos. O pior de tudo é que desrespeito à vida e à dignidade humana saltam das telas de tv e da internet para a prática no mundo real. Se o leitor entrar na Folha Online e digitar “morador de rua” e “agressão”, vai encontrar inúmeros registros – no Brasil- de ataques à moradores de rua. É assustador. “Os pobres agora emprestam seus corpos ao espetáculo do horror, barbarizando e sendo barbarizados”[1].
Lembro-me sempre do caso do índio incendiado em Brasília. Ao ser interrogado, um jovem acusado “justificou”: “Não sabíamos que era um índio! Pensamos que era um mendigo qualquer!”. Colocar fogo em mendigo parece melhor??? O mesmo aconteceu pouco tempo atrás com uma empregada doméstica atacada no Rio por 5 rapazes de classe média- alta. Estes também “justificaram” a conduta: “pensamos que era uma prostituta”. Faz sentido?
Acreditamos seriamente que a educação é a pedra fundamental para a resolução desta violência gratuita. Questionamos: o que faz com que povos no oriente médio se odeiem? Pra além das questões históricas, citamos a educação (transmissora do ódio por gerações). Há uma verdadeira cultura do desamor. Muitos aprenderam inclusive, desde tenra idade, a cuspir quando o outro (considerado desafeto) passa por perto. Receberam lavagem cerebral de que o diferente é mau e sem valor, e levam esta crença às últimas conseqüências. Se desde crianças aprendessem a conviver pacificamente, este ódio seria refreado. (Sim, já existem escolas mistas para reeducar algumas crianças no oriente médio. É um grande passo).
Poderia falar do ódio e da intolerância entre torcedores fanáticos de futebol, entre outras intolerâncias, mas reservei este pequeno espaço para falar de pessoas que estão à margem da sociedade, em especial os moradores de rua, sem nomes, agredidos gratuitamente (pois não costumam ser atacados por defender opiniões políticas ou religiosas). A sobrevivência é o que interessa- não importa o meio. Vale qualquer coisa. Até mesmo a auto-lesão. Esta reflexão somente discute a agressão sofrida por eles, no meio da noite, enquanto dormem desprotegidos, e em outras situações de completa desproteção.
Precisamos de uma educação que reconheça a existência dos vulneráveis, que pregue o valor da pessoa assim como a importância da solidariedade. Somos todos feitos da mesma matéria e a única riqueza que podemos adquirir de verdade é a de espírito, já que a outra de nada nos aproveita quando mortos.
A Constituição Federal traz-nos em seu art. 5º os direitos e garantias fundamentais – entre eles o direito à vida, à liberdade de culto, a igualdade entre homens e mulheres, a liberdade de pensamento, o combate ao racismo e à tortura, etc. A Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos ( de outubro de 2005) defende sem seu art. 3º: a dignidade e os direitos humanos; em seu art.11 a não-discriminação e a não-estigmatização; e em seu art. 28 expressa sua repulsa a qualquer ato contrário aos direitos humanos, às liberdades fundamentais e à dignidade humana.
A cultura do ódio e da exclusão deve ser combatida por outra, interessada na compaixão e inclusão.
Me despeço com trechos de “Ode aos Ratos”, de Edu Lobo e Chico Buarque.
Rato de rua
Irrequieta criatura
Tribo em frenética
Proliferação
Lúbrico, libidinoso
Transeunte
Boca de estômago
Atrás do seu quinhão
(...)
Rato de rua
Aborígine do lodo
Fuça gelada
Couraça de sabão
Quase risonho
Profanador de tumba
Sobrevivente
A chacina e à lei do cão
Saqueador
Da metrópole
Tenaz roedor
De toda esperança
Estuporador da ilusão
"Ó meu semelhante
Filho de Deus, meu irmão".
[Grifo nosso].
PINTURA: O Velho Violonista. PABLO PICASSO. 1903. Óleo sobre painel, 1,21 m x 0,82 m. Instituto de Arte de Chicago.
Observação: Em sua "Fase azul", Picasso retratava mendigos, andarilhos, marginais ou vítimas da sociedade.
[1]:BATISTA, Vera Malaguti. A funcionalidade do processo de criminalização na gestão dos desequilíbrios gerados nas formações sociais do capitalismo pós-industrial globalizado. In.: Globalização, sistema penal e ameaças ao estado democrático de direito. Coord.: Maria Lúcia Karam. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 54.
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